Por mais de uma década, o juiz (hoje aposentado) Marcelo Tadeu, do Tribunal de Justiça de Alagoas, insistiu que era o verdadeiro alvo de uma emboscada que matou o advogado mineiro Nudson Harley, 46, em 3 de julho de 2009. O crime ocorreu em frente a uma farmácia de Maceió, onde dois homens chegaram e atiraram enquanto a vítima falava ao orelhão com a esposa. Com histórico de decisões marcantes no estado, Marcelo Tadeu havia acabado de chegar ao estabelecimento, enquanto Harley estava na porta. Usavam roupas parecidas e tinham semelhanças físicas. Pistoleiros mataram o advogado, mas nada tirou da cabeça do magistrado que as balas eram endereçadas a ele.
Onze anos e meio depois, o caso teve uma mudança de rumo após a investigação da Polícia Federal, dentro de um inquérito aberto no STJ (Superior Tribunal de Justiça). O inquérito confirmou a tese de Tadeu de que houve um erro de execução, e ele era a vítima. O mandante do crime foi uma surpresa: o atual delegado-geral de Alagoas, Paulo Cerqueira, que à época era chefe da Deic (Divisão Especial de Investigação e Capturas) e foi o responsável pelas investigações da morte do advogado. Ele nega o envolvimento no homicídio (leia ao final do texto).
O UOL teve acesso ao despacho assinado pelo delegado federal Alexandre José Borges de Mendonça, de 12 de março, que detalha uma trama que contou até com o pagamento de despesas do assassino pela polícia alagoana. Entre os pontos que chamaram a atenção da PF, está a confirmação de que a "Polícia Civil de Alagoas nunca considerou a hipótese" de Marcelo Tadeu ser o verdadeiro alvo daquela noite —apesar dos indícios apontarem isso.
"Diziam que era esquizofrenia minha, que estava inventando coisas. Bati à porta do Judiciário, tive 'resposta zero'. Bati no MP [Ministério Público], também foram indiferentes às minhas conjecturas. Só fui ouvido na investigação aqui um ano e meio depois do crime. Mas era um inquérito maquiado, sem nenhum fundamento, comandado pelo Cerqueira", conta Tadeu.
A investigação apontou que Harley teria sido morto por um ex-namorado de uma mulher com quem teria se envolvido em Maceió. Durante os anos de espera, Tadeu chegou a conhecer a mãe e a viúva do advogado mineiro morto, que nunca viam qualquer motivação para que fosse assassinado —ele estava hospedado em Maceió, para onde veio a trabalho como inspetor de qualidade da construtora OAS. A família do advogado nunca teve dúvida de que a morte teria ocorrido por engano.
Eu me parecia com ele, estava com roupas parecidas, tinha cor de pele igual, estava à noite. Sofri muito com isso. A mãe dele um dia me ligou e perguntou quem tinha mandado matar o filho dela. O coitado estava na hora errada. O tiro era para mim, e ele foi no meu lugar. Hoje está mais do que provado que o negócio é pesado, é crime organizado. Marcelo Tadeu, juiz aposentado.
Sem concordar com o resultado da apuração em Alagoas, Tadeu levou o caso ao STJ, que designou a PF para apurar o caso.
Enredo de filme Segundo apurou a PF, a execução do crime foi comandada por Wendel Guarinieri, um ex-integrante do programa de proteção de testemunhas e que havia sido preso no dia 19 de junho de 2009 (duas semanas antes do assassinato do advogado). Guarinieiri teve a prisão temporária decretada porque o MP obteve informações de que ele teria sido contratado para matar uma autoridade de Alagoas. Além disso, um inquérito foi aberto e teve início o monitoramento telefônico dele. A investigação e a custódia do suspeito, à época, ficou a cargo da Deic, comandada por Paulo Cerqueira.
Com o andar das investigações, a PF achou indícios de uma ligação de Guarinieiri com Cerqueira. "Registre-se que, mesmo expirado o prazo de prisão temporária [5 dias], Wendel permaneceu sob a 'custódia' da Deic, sendo hospedado em um apartamento e uma pousada, tudo custeado pela Polícia Civil de Alagoas. Paulo Cerqueira passa a pagar algumas despesas de Wendel com recursos próprios", relata o delegado da PF.
Ainda segundo a PF, um dia antes do assassinato do advogado, Guarinieiri trocou de chip e de número do celular por orientação de Cerqueira. Mas continuou monitorado pelo número IMEI do aparelho. Entre os dados daquele monitoramento, Guarinieiri recebeu uma ligação de cerca de dois minutos de duração do próprio Cerqueira. O registro, porém, foi apagado. "Seu conteúdo [da ligação] é desconhecido, uma vez que foi sonegado ou apagado por policiais ligados ao indiciado Paulo Cerqueira. Registre-se que diversos áudios interceptados sumiram ou foram deletados", diz o despacho.
Um dia depois do crime, uma outra ligação foi interceptada, mas a gravação não foi encontrada. Isso só aumentou a suspeita de envolvimento do delegado alagoano. A PF ouviu Guarinieiri, que teria confirmado que Cerqueira seria o autor intelectual do crime. A PF diz que ele teve contratação intermediada por um policial militar —que já foi assassinado.
Cerqueira foi quem comandou a investigação do crime ocorrido na porta da farmácia e nunca levou a sério a hipótese de morte por engano e, ao final, indicou um suposto crime passional. Dizia, desde o início do caso, que achava "improvável" o erro de execução.
A PF, porém, diz que a investigação da Deic nunca citou o nome de Guarinieiri nem apurou a hipótese de erro de execução. Afirma ainda que Cerqueira assumiu o caso e "passou a desvirtuar propositalmente o curso daquelas investigações".
Paulo Cerqueira tentou encerrar as investigações precocemente, o que só não ocorreu por intervenção do juiz Marcelo Tadeu. Despacho do inquérito da PF.
Sem motivo certo Marcelo Tadeu afirma que não sabe o que teria motivado o plano para matá-lo, mas diz crer que teve relação com decisões de casos emblemáticos que tomou. "Isso vem da insatisfação desse meu comportamento, na visão coronelista de Alagoas. Diziam que Marcelo Tadeu era astuto, que era atrevido, que atuava em situações em que deveria me calar. Mas nunca me calei", diz.
Indiciado, Paulo Cerqueira não quis dar entrevistas e, na sexta-feira, entregou o cargo de delegado-geral da Polícia Civil de Alagoas. Em nota, diz que o indiciamento da PF é injusto. "Recebi a notícia do indiciamento com a certeza de ser uma grande injustiça, pois sempre pautei minha atuação com respeito ao cidadão e à lei. Rechaço, em nome da verdade, qualquer envolvimento em trama criminosa, muito menos em desfavor de uma pretensa vítima, com a qual sempre mantive relação cordial e respeitosa, e que a mim sempre dispensou o mesmo tratamento respeitoso, não tendo no passado e no presente qualquer motivação para ataque à integridade física do então magistrado", afirmou.
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