18/06/2024 17:19:28
Alagoas
Primeira usina eólica de Alagoas é ameaçada por falha em licenciamento
Consulta a povos e comunidades tradicionais foi realizada por empresa, e não pelo governo, como define legislação adotada no Brasil
Uma falha no licenciamento ambiental ameaça a implantação da primeira usina eólica de Alagoas
Assessoria

Uma falha no licenciamento ambiental ameaça a implantação da primeira usina eólica de Alagoas, cuja audiência pública para discutir os impactos ambientais está marcada para quarta-feira (19) de junho. É que a própria empresa responsável pelo empreendimento realizou consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais da região, e não o governo, como define a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada no Brasil há mais de 20 anos.

A consulta prévia é obrigatória e deve ocorrer antes de iniciado o processo de licenciamento. Para João Paulo Diogo, coordenador do Coletivo de Assessoria Cirandas, pelo fato de a aplicação desse artigo da Convenção 169 da OIT ser uma responsabilidade do Estado, a iniciativa de uma empresa, por mais bem-intencionada que seja, não pode ser considerada como uma realização válida da Consulta Prévia, Livre e Informada.

Ele lembra que o Ministério Público Federal também considera uma obrigação do Estado brasileiro “consultar, de forma adequada e respeitosa, os povos indígenas e comunidades tradicionais sobre decisões administrativas e legislativas que possam afetar suas vidas e seus direitos”.

“Trata-se de um direito dessas populações de serem consultadas e participarem das decisões do Estado por meio de um diálogo intercultural marcado pela boa fé”, afirma João Paulo.

Na opinião do assistente social, especialista em Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, para que essa consulta seja válida, é necessário garantir a ampla participação dos povos e comunidades, com transparência, livre de pressões, e ser flexível para atender à diversidade dessas populações.

“Além disso, a consulta deve ter efeito vinculante, ou seja, o Estado deve incorporar o que foi dialogado na decisão a ser tomada”, afirma João Paulo.

A reunião com representantes dos indígenas e remanescentes de quilombos ocorreu em janeiro do ano passado em Poço Dantas (no município de Inajá, em Pernambuco), uma das três comunidades quilombolas existentes na região. Não contou sequer com a presença de um representante do governo de Alagoas, como descreve o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) do empreendimento.

“A equipe da Temis (empresa baiana responsável pelo Rima) e o Sr. Diego Ramos, representante da Casa dos Ventos, falaram sobre o Complexo Eólico Mata Grande, seguindo os princípios da Convenção 169 da OIT para uma consulta prévia, livre, informada e de boa fé (sic). A comunidade fez perguntas sobre o projeto”, consta no Rima.

Há ainda na área do complexo eólico ao menos dois povos indígenas - kambiwá e tuxá - ambos em Pernambuco. Mata Grande (AL) e Inajá (PE) estão na divisa dos dois Estados, área onde está prevista a implantação do Complexo Eólico de Mata Grande, com 40 turbinas eólicas distribuídas em quatro parques, cada um com 10 aerogeradores de 115 metros de altura (o equivalente a um prédio de 38 andares).

Com o mesmo status de uma lei, a Convenção Nº 169 da OIT foi promulgada em 1989 e ratificada pelo Brasil em 2002. Assegura aos povos e comunidades tradicionais o direito de serem consultados previamente sobre empreendimentos que possam alterar seu modo de vida ou o território. Assim, essas populações devem ser ouvidas mesmo antes de iniciado o processo de implantação de empreendimentos e têm, de acordo com a convenção, a prerrogativa de não aceitarem a instalação de turbinas eólicas em suas terras.

Ambientalistas de Alagoas e moradores da área cobram maior transparência no processo de implantação do complexo eólico.

“É importante que esse empreendimento seja implantado na região, mas é preciso estabeler um diálogo aberto com a comunidade, para mostrar os prós e os contras”, opina o ambientalista Haroldo Almeida.

Integrante da Associação de Mulheres Rurais do Semiárido Alagoano e do Território Alto Sertão de Alagoas, Maria Ângela Nascimento dos Santos diz que as pessoas da região não têm ideia do que acontecerá depois que as torres eólicas forem instaladas. “A empresa fala em arrendar as terras, mas não detalha os impactos na saúde das pessoas, nem no meio ambiente, que são coisas comprovadas em outros Estados do Nordeste em que a energia eólica já entrou.”

Único dos nove Estados do Nordeste que ainda não produz eletricidade a partir da força dos ventos, Alagoas iniciou em abril de 2022 a negociação junto à empresa Casa dos Ventos para a implantação do Complexo Eólico de Mata Grande, com capacidade total de 264 megawatts de potência instalada.

No Nordeste há 1.485 usinas eólicas autorizadas a funcionar, de acordo com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). São 577 na Bahia, 384 no Rio Grande do Norte, 174 no Piauí. 172 no Ceará, 98 na Paraíba, 60 em Pernambuco, 19 no Maranhão e 1 em Sergipe.

Os Estados da região que mais geram energia elétrica a partir da força dos ventos são Rio Grande do Norte (32,15%), Bahia (30,80%), Piauí (13,16%), Ceará (8,41%), Pernambuco (3,83%), Paraíba (3,24%). Maranhão (1,39%), Sergipe (0,11%).

A realização da Consulta Livre Prévia e Informada como condição inicial do processo de licenciamento está ainda prevista no documento Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável, elaborado pelo Plano Nordeste Potência e entregue ao governo de Alagoas em fevereiro deste ano. “Caso não seja devidamente comprovada pelos órgãos responsáveis, o processo deve ser paralisado até que seja efetuada a consulta, a fim de garantir o seu caráter prévio”, recomenda o relatório.

Durante reuniões realizadas em 19 de fevereiro, receberam o documento as Secretarias do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos e de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, além do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA) e da representação local do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).

Lançado em janeiro, o relatório foi elaborado por um grupo composto majoritariamente por representantes de comunidades afetadas pela geração de energia eólica no Nordeste. “A crescente expansão de renováveis tem intensificado conflitos territoriais, gerado ameaças à biodiversidade, agravado injustiças e danos socioambientais aos povos do campo, da floresta, das águas e aos seus ecossistemas”, traz a introdução do documento.

Durante o processo de elaboração do relatório, representantes das comunidades participaram de três encontros presenciais, realizados em Salvador (BA) e no Recife (PE), promovidos pelo Plano Nordeste Potência, iniciativa resultante de uma coalizão de ONGs empenhadas em fazer com que transição energética, além de levar em consideração o meio ambiente, ocorra de forma socialmente justa e inclusiva.

AUDIÊNCIA PÚBLICA

A audiência, com transmissão ao vivo pelo canal no youtube do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (Ima), ocorrerá na quarta-feira (19), a partir das 9h, no ginásio de Esportes de Mata Grande, maior município alagoano, a 270 quilômetros da capital, Maceió.

A professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Flavia Moura questiona ainda as informações do Rima em relação à biodiversidade da região. Ela diz que a quantidade de espécies citada é inferior à existente. “Há pelo menos o dobro de espécies de plantas na área. Levando em consideração que é uma região ainda pouco estudada, esse número aumentaria se houvesse um levantamento mais detalhado”, avalia a pesquisadora.

“Há ainda espécies ameaçadas que não foram citadas. Pelo menos uma planta e duas aves”, afirma Flavia Moura. “São aves do dossel, a parte mais alta da vegetação, por isso são animais que dependem mais da mata.”

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