Zika vírus é preço pago por negligência em relação ao Aedes aegypti - Foto: Divulgação
Zika vírus é preço pago por negligência em relação ao Aedes aegypti - Foto: Divulgação
Por Itamar Melo / Zero HoraEvitar a entrada do zika no Basil era impossível. Prever que o vírus pudesse causar algo tão grave como a microcefalia seria improvável. Prevenir a ocorrência de centenas ou milhares de casos de um mal até então desconhecido pela ciência estava fora do alcance. Apesar disso, a calamidade causada pelo vírus foi o alto preço que o país pagou por um erro perfeitamente evitável: negligenciar a dengue e permitir que o Aedes aegypti infestasse o território nacional.
Segundo dados de novembro do Ministério da Saúde, o mosquito — transmissor de dengue, chikungunya, zika e febre amarela — estava presente em níveis que implicavam risco ou alerta na metade dos 1.792 municípios avaliados. Nem sempre foi assim. Sessenta anos atrás, em 2 de abril de 1955, o último foco do Aedes no país foi extinto na zona rural de Santa Terezinha, município do interior baiano. Três anos depois, declarou-se oficialmente que o Brasil havia erradicado o inseto. Em 1967, ele reapareceu no Pará. Passados seis anos, foi riscado de novo do mapa.
A eliminação do vetor foi o resultado de uma campanha que envolveu as Américas e começou na década de 1920, sob comando da Fundação Rockfeller. Em 1947, a Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde juntaram-se ao esforço e lançaram um programa para erradicar o mosquito no continente. Na época, a preocupação era a febre amarela, que provocava milhares de mortes. Na década seguinte, o Aedes havia desaparecido em quase todos os países da região.
— Entre os anos 1950 e 1970, quando se fez uma campanha sistemática de combate, praticamente não havia mosquito. Dos anos 70 para cá, foi aumentando, por falta dessa luta sistemática. A impressão é de que agora se decide matar o Aedes quando ocorrem muitos casos de dengue no ano anterior. Quando há poucos casos, no ano seguinte se age pouco. Era possível o país ter feito muito melhor, com equipes permanentes. Com o tempo, o que aconteceu foi o mosquito se adaptar ao frio e à altitude, a ponto de hoje ele ser encontrado no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina e até a 1,6 mil metros de altura — observa Celso Granato, diretor clínico do Grupo Fleury, principal laboratório de medicina diagnóstica do país.
Com os casos de zika assombrando o país, os governos municipais, estaduais e federal montaram uma operação de guerra contra o mosquito.
Na semana passada, o Ministério da Saúde anunciou que, até 31 de janeiro, 100% dos domicílios brasileiros serão visitados, com o fim de eliminar criadouros, por um exército de 266 mil agentes comunitários, 43,9 mil funcionários de combate a endemias e um contingente desconhecido de militares, bombeiros, policiais e profissionais variados. Também foi anunciada farta distribuição de larvicidas. Dias antes, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, já havia prometido a revisão de uma portaria de julho, que estabelecia limites de profissionais por município e foi responsável por levar a um corte de até 40% na quantidade de agentes que enfrentavam o Aedes. Na ocasião, Castro reconheceu falhas no enfrentamento do problema:
— Não estou culpando ninguém, mas contemporizamos um pouco o combate ao mosquito. Ficamos sempre na loteria. Um mosquito que traz doenças dessa gravidade não pode ter contemporização.
A mobilização e as medidas anunciadas pelo governo foram muito bem recebidas e conquistaram elogios, mas também fizeram emergir uma pergunta, verbalizada por Nancy Bellei, coordenadora do comitê de virologia clínica da Sociedade Brasileira de Infectologia:
— Por que isso não foi feito antes? Não surgiu nenhuma arma nova. Tudo o que está sendo usado no combate ao Aedes já existia. Então, por que não foi feito? Estão tomando essas medidas com o país em uma situação econômica terrível. Antes, a situação era favorável. Por que não foi feito? Se tivéssemos realizado o combate efetivo, que se diz que está sendo feito agora, teríamos minimizado o problema do zika. E a dengue já era uma doença grave, que justificava essa ação.
Os números comprovam essa gravidade da dengue e deixam claro que o país não estava sendo competente em combatê-la. O patamar de casos anuais foi se elevando ao longo das últimas décadas, sem que os brasileiros parecessem se importar. Nos anos 1990, a média foi de 136 mil registros a cada 12 meses. Nos anos 2000, saltou para 350 mil. De 2010 a 2014, mais do que dobrou, alcançando 881 mil. Em 2015, até meados de novembro, já eram 1,5 milhão de doentes, um recorde. Os mortos neste ano já passam de 800, quase o dobro do registrado no ano passado. Em comparação, o zika vírus foi associado a 2.782 casos de microcefalia e a 40 mortes.
— Ter quase 900 mortes comprovadas por dengue em um ano é muito. Pelo amor de Deus, não é normal. Mas nós fomos nos acostumando com a doença ao longo do tempo. Essa foi a falha, achar que isso era normal. Nós já tínhamos razões suficientes para matar o mosquito, porque já havia muita gente morrendo, mas só fomos ficar chocados quando o zika começou a afetar bebezinhos — diz Celso Granato.
Com o Aedes aegypti reinando em solo brasileiro e o zika vírus circulando pelo mundo, era esperado que em algum momento os dois se encontrassem e a infecção acometesse os brasileiros. O professor José Luiz de Lima Filho, diretor do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami, da Universidade Federal de Pernambuco, começou a ouvir sobre a ameaça em eventos com colegas estrangeiros. O alerta era de que o zika ia chegar. Dois anos atrás, ciente do risco, Lima Filho começou a trabalhar no desenvolvimento de um teste para o diagnóstico. Ele reconhece que era muito complicado criar barreiras eficientes para bloquear a entrada do vírus — um mosquito contaminado pode chegar ao país escondido em algum navio, por exemplo —, mas está convencido de que houve erros.
— Quando surge um agente novo, desconhecido, precisamos ficar atentos. Mas nós não temos um órgão que se antecipe, como o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos. As universidades também têm responsabilidade nisso, de não trabalhar na prevenção e depois ter de correr atrás. O zika não foi visto como prioridade, e houve um certo relaxamento em estudar possíveis efeitos colaterais da infecção. Mas eu não culparia ninguém, pois era algo completamente novo. Agora temos de agir rápido, porque é capaz de ter um pico no Carnaval — afirma.
Não se sabe ao certo quando o vírus ingressou no país. Uma hipótese é de que isso tenha ocorrido durante a Copa do Mundo, quando visitantes de todos os quadrantes aportaram no Brasil. A objeção a essa especulação é de que os locais onde o zika emergiu não seriam os mesmos em que os turistas estiveram. Outra possibilidade é de que ele tenha entrado, também em 2014, durante uma competição de canoagem realizada no Rio de Janeiro. O evento reuniu vários atletas de ilhas de Pacífico, justamente a região que havia registrado o maior surto do vírus, um ano antes. Há ainda os que acreditam em uma chegada anterior, que passou despercebida.
— Nos últimos dois anos, muitos testes de dengue davam resultados esquisitos. O exame não ficava completamente positivo. Nós pensavámos que era falta de qualidade do kit, mas agora nos perguntamos se já não era zika, que é muito parecido com dengue. De repente, ele já estava aqui há mais tempo e a gente não sabia — especula Granato.
O certo é que, introduzido no país, o vírus encontrou no Aedes uma porteira aberta para se disseminar de norte a sul. Outra facilidade foi o fato de se tratar de um agente novo nestas bandas, com uma população virgem por explorar — se alguns brasileiros já tivessem contato anterior com o zika, não se infectariam uma segunda vez, o que limitaria sua circulação. Por fim, quando os primeiros sinais da presença do vírus foram detectados, houve um outro fator que impediu que as atenções se voltassem a ele.
— Quando ouvimos falar da doença, no ano passado, estávamos com a atenção muito voltada para a entrada da chikungunya. O que havia era o relato de uma doença exantemática (enfermidade infecciosa, caracterizada pelo surgimento de lesões cutâneas pelo corpo) indeterminada, sem diagnóstico preciso. Não preocupou tanto, porque o relato era de que fosse uma virose branda, tanto que muita gente começou a confundir com dengue leve — rememora Valcler Rangel, vice-presidente de ambiente, atenção e promoção da saúde da Fundação Oswaldo Cruz.
No começo do ano, identificou-se que era zika, mas ainda aí o alarme não soou. Pelo que se sabia, o vírus não oferecia maiores perigos. Era quase sempre assintomático, relativamente benigno e só infectava uma vez. A bomba só foi explodir no fim do ano, nas ecografias de gestantes que revelaram uma incidência inesperada e incomum de casos de microcefalia.
— O Brasil foi o primeiro país a identificar e notificar algo mais grave, o que é um ponto positivo para o país — ressalta Paulo Behar, chefe do serviço de infectologia da Santa Casa de Porto Alegre.
Valcler Rangel afirma que, caso já se conhecesse a relação entre zika e microcefalia, a reação inicial do governo teria sido muito mais forte e efetiva. Entre as consequências que ele prevê para a situação está uma considerável queda na taxa de natalidade brasileira no próximo ano, porque muitas mulheres estão, por medo, decidindo não engravidar. O dirigente da Fiocruz também vê um lado positivo na crise. Com a grande mobilização gerada pelo zika, a população do Aedes deve declinar consideravelmente. Em consequência disso, não seria apenas o novo vírus que refluiria. Também devem recuar bastante os casos de dengue e chikungunya.
— Não há situação igual a esta na história da saúde brasileira, de uma doença que cause tanto impacto e seja tão difícil controlar. Há muita mobilização, e acho que vai trazer resultado. Quando se fala que a microcefalia é uma tragédia, significa que não podemos ficar nesse patamar. Não podemos naturalizar, admitir que isso ocorra em qualquer criança. O
Aedes se expandiu pela desordem urbana, pela falta de informação. A estratégia tem de ser mudada. Ela está mudando. Estamos diante de uma grande oportunidade de provocar uma transformação significativa na situação vetorial — acredita Rangel.